segunda-feira, 19 de maio de 2008

PAGANDO O PATO


Desta vez o leitor participa. A última frase do conto está em branco, para quem quiser sugerir. Na primeira consulta que fiz por e-mail, vieram respostas das mais politicamente corretas às mais irônicas. Qual seria a sua frase? O que você diria?


- Eu quero um pato.

Júlia foi enfática, como toda criança birrenta. E não teve Cristo que a fizesse mudar de idéia.

Maldita visita da escolinha ao sítio, pensei.

Geremias logo estava entre nós. Com suas penas delicadas, seu grasnar suave e seu rebolar engraçado, que Júlia imitava o tempo todo. O novo animal de estimação era pura atitude e personalidade. Cagava e andava. Literalmente.

O bicho foi crescendo cada vez mais. E cagando cada vez mais também. E como cagava. Quack, quack, ploft. Quack, quack, ploft. Soltava suas penas enormes, seu grasnado estridente e suas fezes por toda a casa.

Apelei. Disse que ele estava triste, o pobre. Prometi que ele não viraria assado, mas que ele precisava estar entre os de sua espécie. Achei dois livros de histórias infantis que jogaram a meu favor. Júlia acabou aceitando que seus bichos de pelúcia não eram a melhor companhia e, seu quarto, o melhor ambiente para o desenvolvimento da ave.

Marcamos a despedida. Seria no lago do parque, onde viviam muitos outros patos como Gê, mas que não defecavam no meu carpete e nem saltavam do armário quando eu abria a porta.

No dia, Júlia conversou meia hora com Geremias. Entendiam-se bem, os dois. Prometeu vir visitá-lo e tudo mais.

Cumprido o ritual, Júlia colocou o bípede na água, devolvendo-o ao seu habitat natural.

Mal começou a nadar quando os demais patos se aproximaram amistosamente, como se recebendo o novo membro do bando.

Júlia abriu um sorriso e eu suspirei, aliviada.

- Viu só, minha filha...

Antes que eu pudesse concluir a frase, os animais o cercaram e o ataque ao intruso começou. Bicaram Geremias, que agonizou, até a morte.

- ... SUA FRASE AQUI


O Destro

segunda-feira, 12 de maio de 2008

ALMOÇO DE DOMINGO

A expressão blasé da garotinha não transparecia a força com que agarrara as genitais do tio por debaixo da mesa. A família, reunida para o almoço de domingo, não percebera o que se passava ali. Desde o reencontro com o tio, dias antes, a menina passou a acreditar que tinha anos suficientes para dedicar boa parte das suas horas aos pensamentos que, dali por diante, cultivaria por ele. Túlio, no auge dos seus 31 anos, nem desconfiava das intenções da sobrinha. Até a mão da garota aproximar-se do seu joelho.

O reencontro acontecera em uma calorosa tarde do mês de janeiro. O termômetro denunciava 30 graus. Mergulhado sob a água da piscina, o corpo da garota já apresentava os primeiros sinais da puberdade. O almoço de domingo – principalmente a essa época do ano – era motivo de casa cheia. Acostumada, mal percebera a presença de Túlio, o tio, recém chegado da viagem de seis meses pelo exterior. No instante em que o olhar da garota atravessou o pátio e cruzou com o corpo do jovem rapaz, um arrepio correu-lhe a espinha. Apoiada sob a beira da piscina, Joana era a imagem do desconcerto. Algo mudava dentro dela. E, enquanto gotículas d’água escorriam pelo rosto da mocinha, iam embora também seus sonhos de criança. “Pura babaquice”, repetia.

Na mesma tarde, em frente ao espelho do quarto, Joana acariciava-se. Pensava no tio. No sol que iluminava a face do tio. Nas mãos fortes do tio. Nos braços que envolveram seu corpo em um longo abraço, logo que ela saiu da água para cumprimentá-lo. Na saudade que nem mesmo ela sabia que sentia dele. E, desde os segundos iniciais daquele instante misterioso – quando algo se modificara –, a garota não barrou um pensamento sequer. Vivia-os. Sentia-os. Como uma jovem donzela. Como tinha de ser.

Os dias nasciam e morriam sem que Joana percebesse o real significado daquele desejo. E nem para onde ele a levaria. A cada visita, a cada abraço carinhoso, a cada momento a sós com o tio, Joana consumia-se. Faltava-lhe ar, faltavam-lhe mãos para agarrá-lo e leva-lo para dentro de si. Faltava-lhe coragem. “E aí garotinha, como vai a escola?”, dizia o tio para a sobrinha. Ela odiava que ele a tratasse como criança. Fechava o rosto e respondia, ríspida: “Bem”. Juntava as mãos e apertava os dedos. Puro ódio. Amor puro?

O fato é que Joana desabrochara. Para o amor. Mais: para o sexo. E, mesmo sem qualquer experiência, era enfática: “Eu quero”. Determinada, a garota seguiu, dia após dia, até o almoço daquele domingo, quando o tio sentou-se ao seu lado na mesa. Enquanto a família comungava da presença uns dos outros, Joana suava. Pensava. Queria. Trêmula, a mão da jovem encontra o joelho do rapaz. “Tio, me alcança a salada”, disse, deslizando a mão pela coxa e chegando até o pênis do jovem. Túlio ficou imóvel, com o prato de salada em uma das mãos, os olhos arregalados e o rosto vermelho. Por debaixo da mesa, Joana segurava e acariciava aquele objeto de desejo que a fazia arder. Parecendo não crer no que ocorrera, Túlio trouxe o prato de salada para perto de Joana, afastou a mão da garota, olhou no fundo de seus olhos, e saiu.

Minutos depois, Joana encarava-se, novamente, no espelho do quarto. A lembrança do olhar de indignação do tio doía e misturava-se às lágrimas que escorriam pelo rosto da menina. Ali, esvaiam-se seus desejos. Foi aí que ela desceu as escadas, atravessou a casa e chegou até a beira da piscina. A família – mesmo sem entender a saída de Túlio – almoçava.

Ninguém compreendera a morte da garota. Nem o porquê de não conseguirem salvá-la. Túlio, o tio, sentia-se culpado. Não encontrava razões para explicar esse sentimento.


Pelo resto dos dias, aos domingos, aqueles almoços nunca mais foram os mesmos.

O Canhoto

segunda-feira, 17 de março de 2008

CONCLUSÕES DA IDADE

Acho que o mais intrigante é perceber que, quanto mais o tempo passa, mais duras ficam as pessoas. Sempre fui fiel aos meus pensamentos, mas quando me diziam que eu ainda iria aprender muito sobre essa coisa chamada “amor’, eu virava as costas e tapava os ouvidos – como se eu não precisasse aprender nada com os outros. A essa altura do campeonato, já não sei avaliar se todas as teorias que foram jogadas em meus braços são verdadeiras. Não sei se aquilo que eu acreditava piamente nunca passou de uma grande besteira. Não sei dizer se as pessoas deixam a leveza de certos sentimentos de lado em prol de algum benefício divino.
Vestir uma armadura é mais confortável?
Qual é a graça dessa piada?
Por que o tempo insiste em endurecer o ser humano?

Quando penso na quantidade de vezes que escutei a frase “deixei de acreditar no amor”, saída da boca de pessoas tão diferentes – e TÃO especiais pra mim – nos últimos meses, páro e, por incontáveis segundos, fixo meu olhar em algum ponto qualquer. “Que porra é essa?”, digo. Ok, essa não é a pergunta mais apropriada. Mas, convenhamos: nesse caso, qual é o questionamento mais coerente? Mais sensato? E qual é a melhor resposta?

Daqui há 13 dias completo trinta anos de vida. Não, não estou em crise. Mas chego a esse ponto de minha estrada com a notória sensação de que amar pode não valer tanto a pena assim. Aos amigos que me lêem e que me conhecem realmente, essa confissão vai soar um tanto quanto estranha, eu sei. Se eu endureci? Não sei. É uma fase? Talvez. É mais um desabafo do Thiago? Sim, mais um! Não gostou? Problema é seu.


Em que momento deixa-se de crer em um sentimento que, por séculos, tem sido taxado e elevado aos céus como “o mais belo” de todos? Juro, não sei. Mas gente, essa é a vida real! Acontece mesmo!! E aqui, à beira de completar três décadas de existência, chego à conclusão de que, sinceramente, eu esperava que isso fosse demorar um pouquinho mais pra acontecer comigo. O fato é que cansei desse meu coração mole. Cansei de escutar “que bacana esse seu jeito intenso de sentir” ou “como é legal amar assim, sofrer assim”. Legal porque não é contigo, ok??? Saturou. Não quero sentir mais nada desse jeito, não pretendo mais dedicar horas a alimentar desejos ou emoções, e nem tenho mais idade pra isso. Sim, estou em crise!! (No comments about that, please!)

Quando eu tinha 18 anos (hã...virou fixação esse papo de idade??) escrevi uma crônica para um jornal cujo título era: “Pra quem não ama”. Nela, apresentava o meu ponto de vista sobre o lado positivo de não amar ninguém. De estar só e feliz. Lembro-me que uma das frases (talvez mais coerente do que qualquer outra que eu já tenha escrito aqui), dizia: “ficar sozinho é ótimo, pois é o melhor momento para você ficar próximo de você mesmo”. Soa piegas? Pode até ser. Mas ameniza um pouquinho desse meu sentimento e de uma certa dor que insiste em martelar aqui dentro.

O Canhoto


quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008

Eu não sei mais.



Eu não sei mais. Não sei mais se existem problemas. Ou se não existe outra coisa na vida além deles. Não sei mais se resolver uma questão é achar uma solução. E se achar uma solução é vencer, ou morrer. Eu não sei mais. Não sei mais o que me move. Não sei mais se são questões, problemas, soluções ou nada disso. Não sei mais O QUÊ é isso de que falo. Não sei mais se me fechei e me contive, ou se me diluí. Se prendi todo amor do mundo aqui dentro, se ele está todo lá fora e eu não deixo entrar ou se, ao contrário, me abri demais e ele escapou pro infinito. Ou mesmo se ele só existe com a mistura do que está fora com o que está dentro. Ou sequer se ele existe. Não sei mais o que existe ou não. Não sei mais o que me faz feliz, o que me faz triste, o que me faz. Não sei se estou perdido, ou se só se perdendo é possível se encontrar. Não sei se quero ou devo me encontrar, nem se devo procurar. Não sei mais a minha freqüência. Não sei mais meu ritmo, meu pulsar. Eu não sei mais de que lado quero estar. Não sei quantos lados há pra se estar. Não sei mais se equilíbrio é o mesmo que eu já pensei que fosse. E não sei se o que eu pensava sobre ele era mais próximo da verdade do que eu penso agora. Não sei nem se existem verdades. Eu não sei o que você pensa. Eu não sei o que pensar sobre estas palavras. Não sei se elas são confusão, se vão morrer na próxima linha, se vão virar canção. Não sei mais se é razão ou emoção. Não sei mais se essa desorganização é organizada. Se alguma coisa fará sentido. Se existe sentido permanente. Se existe sentido, seja lá o que já se tenha sentido. Não sei o que quero dizer, nem se quero dizer. Não sei se já acabei dizendo sem saber que disse. Não sei se é cedo ou tarde, já que não sei mais em relação a que. Não sei mais se perdi a noção, ou se essa é a única noção possível e autêntica. Não sei se há autenticidade. Não sei mais do que você. Nem menos. Não sei mais se o não saber é ignorância ou sabedoria, ou se esses dois conceitos existem de fato. Não sei mais o que é real, nem se existe realidade, ou se há muitas. Não sei se estou num círculo vicioso, ou se justamente escapei dele e a prova disso é o não saber. Não sei mais o que passa na TV. Não sei mais o que se passa. Não sei o que há.

O Destro

quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

CRÔNICA ATUAL

Caríssimos, voltei! (alguém ainda por aí? hehe)
A crônica abaixo foi escrita no ano de 2004. Foi publicada em jornais aqui de SC, em uma revista do RS e também apareceu em quatro ou cinco blogs, não tenho certeza (tudo com o devido crédito ao autor que vos fala hehe).
É bem pessoal, de uma época da minha vida, mas....desde quando falar em sentimentos é factual?
Muitas dessas palavras ainda cabem como uma luva para mim. Pra tanta gente.

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Quando se quer fazer alguém feliz*

Como na música de Charlie Brown Jr, às vezes tenho vontade de dizer: "se eu não puder fazer você a pessoa mais feliz, eu chego o mais perto disso possível". Falo de querer fazer feliz a pessoa que amamos. Tomar nos braços, pegar no colo, apertar com força e deixar bem claro que, sim, faremos tudo o que tiver ao alcance de nossas mãos, pés e corpo todo para proporcionar felicidade a ela.

Pouco importa o que os outros pensam, pouco importa se chove ou faz calor. Não queremos brigas, nem discussões, nem bate-bocas e tempestades em copo d'água. Pouco importa se estamos cansados e, de repente, somos surpreendidos por um pedido de massagem. Tanto faz se dormir tarde só para assistir a um filme juntinhos significa, no outro dia, estar terrivelmente cansado para enfrentar um dia inteiro de trabalho. Alguém aí liga pra isso?

Eu, envolto pelo eterno e infinito romantismo que habita e muitas vezes destrói meu coração, preciso fazer alguém feliz. Não que minha total felicidade dependa disso, não que meus objetivos sejam apenas esses. Mas quero abrir meu coração para que alguém habite nele, por inteiro, sem medo, sem receio. Sei que muitas vezes minha carência fala mais alto, mas tenho essa tendência desde sempre: me sinto desprotegido quando olho pro lado e constato que minha vida, nesse aspecto, está cheia de espaços vazios.

A verdade é que todo mundo quer ser feliz, mas nem todos do mesmo jeito. Às vezes, um pedaço da nossa felicidade depende de alguém cujos objetivos, nem de longe, são os mesmos. E isso, meus amigos, machuca. Nos faz sentir menores, faz nosso tão nobre amor parecer lixo cada vez que nos é negada a chance de demonstrar um pouquinho do quanto poderíamos fazer feliz a vida desse alguém, que parece peça fundamental para o bom funcionamento do nosso coração.

Tenho receio em afimar que, de uns tempos pra cá, tem me sido negada a chance de concretizar planos assim. Receio porque, independente disso ou daquilo, essa vontade tão grande de fazer o "meu alguém" feliz existe. E eu não a vejo como tempo perdido, como obra inacabada ou algo do gênero. Respeito, simplesmente. Porque faz parte de mim. Porque, lá no fundo, tenho a impressão de que existe muita gente por aí que procura o mesmo que eu. Embora isso não signifique nada quando você pára e percebe que a pessoa que você mais deseja fazer feliz, já é...e que esse fato não tem nada a ver com você.

*O Canhoto, em agosto de 2004

quinta-feira, 8 de novembro de 2007

ENsaio de mim

...caros leitores... desta vez deixei o conto e a crônica de lado para publicar alguns antigos poemas meus... fiz uma rápida seleção (quem sabe faço ainda outros posts publicando mais alguns)... espero que gostem


Transpareço meu amor
Quando teu olhar me atravessa
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Na guerra dos sentimentos
Sou voluntário
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Nem de Estado
Nem de esquerda
O golpe que me derrubou
Foi aquele susto que você pregou
Quando me deixou
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Sou como a lua
Me renovo e cresço
Depois que míngüo quando estou cheio de tudo
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Essa fotografia me deixa irado
Faço cena
Rasgo
Digo que é passado

Mas deixo os negativos
Bem guardados
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Posso
Te causar-te muita dor

Pleonasmo vicioso
Sou muito perigoso
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Se somos iguais
Ou temos semelhanças
Feitos um para o outro
Que festança

Se temos diferenças
Ou mesmo desavenças
E o mundo nos trai
Tudo bem
Os opostos se atraem
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Cadê você?

Não uso magia
Agentes do FBI
Nem consulto o tarot

Pra te localizar
Ligo pro teu celular
Alô?!
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Cadê você? II

Telefone desligado
Ou bateria terminada
Tu tu tu
Sempre a minha desgraça
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Reencontro

Ex toca no coração
Estaca no coração
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Que calor
Essa colcha que me cobre
Volta e meia me bole
Onde está Wally?
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Ao me ver passar maionese no bolo
Fez cara de nojo
Isso te choca?!
Prepare-se para o que virá
Quando trancarmos a porta
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Resistiu por muito tempo
Mas depois da amiga ter insistido
Ela ousou sair com aquele decotado vestido
Na frente dos outros: - Era só isso?!
No fundo pensando: - Quanto tempo perdido!
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Mudo de opinião
Depende do com
E do sem roupão
________________

Te calo
Ora com a fala
Ora com o falo
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Na água do mar
Oculto a ereção
De ver você à milanesa
Sob o sol do verão
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Nós no tapete dando giros
Até que alguns espirros
Anunciam

Final triste
Rinite
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Derruba a taça cheia sobre mim
E deixa escorrer
Agora vem
Começa a lamber
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Pequenos
Curtos
Afinal com quatro letras
Se diz tudo
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Bem
São
Benção
________________

E.T.a mundão véio sem portera
________________

- Absinto?
Sinto muito.
Abstêmio.


O Destro

terça-feira, 23 de outubro de 2007

O HOMEM DE TERNO


- Por favor, eu quero que a minha sepultura seja bem rasa.

Ele ergueu os olhos. Ficou ali, estático. E, sem olhar para trás, ouviu, novamente, a voz:

- É que eu quero sentir a chuva...eu gosto da chuva.

Vagarosamente, o coveiro virou-se. Com a pá na mão viu, na beira da cova, em pé, a figura de um homem. Estava de terno preto. Segurava as duas mãos na altura do peito. Parecia constrangido e assustado.

- Você entendeu? A cova....não faça um buraco muito grande...assim eu posso...
- Quem é você? – disse o coveiro.
- Eu? Eu, bem...não sei se isso faz diferença. A essa altura da minha vida...

Foi quando o homem de terno parou de falar. Seus olhos, que antes demonstravam uma dose de “pena de si próprio”, fixaram-se no chão marrom da terra tirada de dentro do buraco. Lembranças invadiram sua mente. A palavra “vida” soou em seus ouvidos de maneira estranha. Ao capotar com o carro em uma estrada, o homem de terno jamais imaginara que, algumas horas depois, estaria ali, de pé, ao lado de sua cova.

Ainda sem compreender, o coveiro insistiu: Quem é você?

- Eu sou a pessoa que...vai morar aí embaixo....(pausa)....estranho isso, não?
- Desculpe, mas eu não estou entendendo. Vou subir aí, porque não consigo ver seu rosto, disse o coveiro, confirmando a total falta de compreensão da situação. Ao aproximar-se, o coveiro girou a cabeça para o lado, desconfiado:

- Tenho a impressão que eu lhe conheço...de algum lugar...

As mãos do homem de terno pareciam agora querer dizer algo, embora não soubessem como.

- Hã....deve ser da capela A?
- Olha, até pode ser...se bem que.... – foi aí que o coveiro engoliu seco.
- O que foi? Fiz algo de errado? – indagou o homem de terno, dando dois passos para trás.
- Você....vo...é o...caixão...eu vi....lá... – as pernas do pobre homem afrouxaram-se. Agarrou-se na pá, que o segurou de seu próprio medo. Ou horror. Ele vira o homem de terno. Duas horas antes. Dentro de um caixão, na capela A. Era o velório de um homem que morrera em um acidente de carro. “Essa vida não vale nada”, pensou, ao olhar o homem no caixão. De lá, o coveiro seguiu para cumprir sua tarefa diária. Abrir covas.

- Olha, não quis assustá-lo. É que já é desgastante o suficiente ficar horas encralacado dentro daquele caixão. Se você puder fazer eu me sentir melhor dentro dessa cova, já me ajuda, revelou o homem de terno, com um sorriso amarelo de dar dó.

Silêncio.
Mais silêncio.

- Você...você está com medo né? Bem, eu....que constrangedor. É a primeira vez que me sinto assim. Talvez porque eu nunca tenha morrido antes né?, disse o homem, tentando descontrair o bate-papo com um risinho.

Mas a face do coveiro parecia envergar-se de pavor a cada nova palavra saída da boca do falecido. Balançava a cabeça negativamente, como que tentando acordar-se de um pesadelo. Mas ele não estava dormindo. Tremendo, segurou a pá. Respirou longamente e, numa ação mecanizada, começou a jogar a terra para dentro do buraco novamente. O defunto continuava ali. O coveiro, trabalhando com a pá de costas para o homem de terno, sabia disso. De repente, um raio invadiu o céu escuro. E os primeiros pingos de chuva começaram a cair. Tímidos. Depois, ferozes. A face do coveiro, molhada, continuava fixa na pá e na terra lançada para dentro do buraco.


Após alguns minutos diminuindo o tamanho da cova, ele virou-se. A visão embaçada pelo temporal – ou pelo temor de olhar novamente para trás – denunciou a ausência do homem de terno. Ele não estava mais lá. Foi quando a chuva cessou. Olhando para dentro da cova, o coveiro, inesperadamente, sorriu.
O homem de terno já poderia sentir a chuva.
E descansar em paz.

O Canhoto

segunda-feira, 15 de outubro de 2007

Randômico

Escolhi o bolo pela cara. Era de milho. Gosto de milho. Podia ser de côco. Eram todos parecidos na vitrine gordurosa. Eu podia, também, ter escolhido pelo sabor e assim solicitar ao atendente. Mas não o fiz. Escolhi aleatoriamente, pela aparência mesmo. Queria o efeito surpresa.

Saindo da padaria havia uma bifurcação e eu sempre ia pela esquerda. Não sei por que razão, mas normalmente era assim. Parei diante dela e fui pela direita, como que desafiando o hábito, provocando o cérebro já acostumado a não pensar mais sobre o trajeto já traçado mentalmente.

Não que eu nunca tivesse tomado o caminho da direita. Eu o conhecia, mas só ia por ele quando havia uma necessidade de passar por ali, como comprar algo na farmácia, que pelo caminho da esquerda não encontrava, ou quando queria ver, na pet shop, os filhotes de cachorros que lembravam minha infância. A distância era a mesma e a paisagem era até mais bonita. Por que diabos eu nunca ia por ali? Não sei.

Quando cheguei na parada de ônibus lembrei que, além de existirem outras duas linhas possíveis para aquele trajeto, ainda havia a opção do metrô, por um preço quase equivalente. Arrisquei o trem. Nada mal. Naquele horário estava até mais vazio que os coletivos urbanos.

Desci no meu ponto e entrei na primeira floricultura que encontrei. Normalmente eu levaria rosas. Achei tão previsível que, mais uma vez no mesmo dia, arrisquei. Levei uma única e lasciva orquídea lilás para nosso primeiro encontro amoroso.

Após o banho em casa, fiz o mesmo. Deixei de lado a camisa azul passada e separada para o compromisso de logo mais. Vesti a rosa, clarinha, tão elegante nas revistas, mas que eu sempre evitava usar. Sei lá. A azul era tradicional e caía tão bem. Também ousei no perfume. Troquei a confiável fragrância amadeirada por uma cítrica do frasco quase cheio.

Conheci Joana quando saíamos do cinema. Era uma comédia romântica. Geralmente não assisto a comédias românticas. Não lembro do título e nem dos protagonistas, mas lembro dela, com seu cabelo longo que, conforme as rajadas do ar condicionado, duas filas diante da minha, revelava um pouco da sua nuca e me causava arrepios.

Na saída, simulei um esbarrão e, me desculpando, desajeitado, puxei assunto. Ela sorriu de um modo tão revelador deixando evidente que percebera meu forjado encontrão. Corei. Ela, entretanto, correspondeu e foi delicada. Achou aquilo engraçado, como confessara no nosso primeiro café, no dia seguinte. Falamos por quase uma semana ao telefone, até o dia de hoje.


Ela me recebeu deslumbrante num vestido preto, curto, colado. Convidou-me a entrar, colocou a flor sobre a mesa e sugeriu um vinho. Ofereceu-me três opções. Deixei que ela escolhesse. Já confiava no seu bom gosto. Ela serviu camarão e fui obrigado a revelar minha fatal alergia. O susto logo cedeu lugar ao riso e lembramos que ontem mesmo ela havia perguntado sobre alguma restrição alimentar, e eu omiti. Estava me divertindo com tanta novidade e leve por permitir o acaso.

Com os corpos colados, mais quentes e audaciosos que quando sóbrios, e antes do primeiro e arrebatador beijo, ela entregou:

- Meu verdadeiro nome é Jorge.

Pois podia ser João, José, Juvenal, Jurandir. Já não tinha a menor importância.

O Destro

segunda-feira, 1 de outubro de 2007

Life is a long song


Sentado em frente à tela do meu computador, escuto Elliot Yamin.
O nome da música? Wait for you.
A letra é um pouco triste. A voz é de um sentimento sem tamanho. A melodia é poética. Mas quando se fala de amor, como ficar indiferente? E sabe-se lá em que a gente pensa. Em quem a gente pensa. Em quantas noites dormidas longe daquele que habita nossos pensamentos embalados por trilhas incontáveis. Se um dia eu escrevesse uma canção, certamente seria sobre o amor. E, pra ser mais preciso, se fosse hoje, seria sobre a saudade. Pois eu queria estar em outro lugar agora. Talvez escutando Wait for you, mas sem ter que esperar por nada. E depois que a música terminasse, apertar o stop e ganhar um beijo de boa noite.
E isso pra mim é amor.
E esses sintomas são eternos.
Hoje minha trilha sonora diz muito sobre mim. E é tão engraçado, porque a mesma trilha atinge outros de formas tão distintas... Mas estou só em meu quarto. E o significado é só meu. E talvez só eu entenda. E talvez seja pra ser assim. E, mais ainda, talvez minha respiração falhe no meio da música porque tudo o que eu sei seja nada.
Mas, como diz Elliot, “you’re still in love with me”.
E não é a música que me diz isso.
O que sinto é que o tempo não parece ser suficiente para tudo o que eu gostaria de viver...com você. Duro ser romântico, não? E amar alguém. E escutar músicas. E ter a trilha exata do que se vive, do que se sente. Você apareceu na minha vida. E, just like a star, ainda está por aqui.
E, desde esse nosso “sempre”, nossas vidas são embaladas por trilhas incontáveis.
Que (en)cantam a nossa história.

Trilhas que fizeram esse post:
Wait for you – Elliot Yamin
One place – Everything but the girl
Quase um segundo – Os Paralamas do Sucesso
Talulah – Jamiroquai
Like a star – Corinne Bailey Rae


O Canhoto

quinta-feira, 23 de agosto de 2007

Cíclope

Percebera o dom ainda criança. Sentia a tristeza dos olhos perdidos, as dores dos olhos sofridos, o cansaço dos olhos caídos, os desvios dos olhares mentirosos, os anseios vazios dos olhos fúteis.

Capturava o interior de qualquer um, desde que conseguisse uma cruzada de olhares, mesmo que por um pequeno instante. O ódio dos olhos fumegantes, a doçura dos olhos que piscavam lentos, a esperança nos que fitavam o horizonte.

Saber de tudo isso, desde pequeno, o fez diferente. A extrema sensibilidade do olhar sobre o olhar alheio, o transformou num tímido. Os desejos dos olhos da carne, a insegurança dos olhos nervosos, a força dos olhos maléficos, a tranqüilidade do olhar sereno. Como o de seus pais o botando na cama, todas as noites para dormir.

Usava o dom em beneficio próprio, lógico. Não havia como ser diferente, quando percebia o lograr no olho do malandro, o preconceito no olho do ignorante, a ordem no olho do dominante. Mas o fizera também em prol dos amigos, salvando-os dos olhares de encrenca.

Precisava apenas administrar o dom. E, já há algum tempo, sentia que, para tal tarefa, precisava, ao menos uma vez por dia, bater o olho num olhar sereno como o que o embalava nos primórdios. Não era difícil.

Sentia-se Deus por entender como ninguém do sutil jogo das expressões faciais.



Percebera tarde o fardo. Quando não conseguia se desvencilhar da tristeza dos olhares perdidos, das dores dos olhos sofridos, do cansaço dos olhos caídos, dos desvios dos olhares mentirosos, dos anseios vazios dos olhos fúteis. Capturava o olhar alheio e fazia dele, o seu.

Começou a andar mais cabisbaixo que de costume, mas a curiosidade e o hábito o faziam levantar a cabeça, achando que o próximo olhar seria sereno, e assim ele terminaria o dia como desejara, como precisava. Era cada vez mais difícil encontrar um. Assim, muitas vezes adormeceu com o olhar dos ansiosos, dos miseráveis. Abusou de outros com olhares malfeitores. Decepcionou-se consigo.

Sentia-se Diabo, tamanho sofrer.



Percebeu que era uma mistura de olhares de fora para dentro, mas não conseguia descrever o próprio. Quais das características absorvidas pelo dom/fardo eram suas?

Fitou-se no espelho por horas. Não entendia suas nuances. Não se enxergava. Não se via. Não se penetrava.

Tentou o vídeo, a fotografia. Não se revelava.



Foi encontrado caído, sem o olho direito e com sangue nas mãos. Na perícia e autópsia a confirmação. Arrancara o próprio olho e o engolira.

- Era louco – saiu pela boca o olhar taxativo do legista.
O Destro